Espetáculo Mulheres Nuas está em cartaz no Teatro da UFSC

“Mulheres Nuas” em cartaz no Teatro da UFSC

 POR MARCO VASQUES E RUBENS DA CUNHA

Eugenio Barba e Tadeusz Kantor reformularam as ideias e as práticas teatrais para sempre. Não é possível pensar a ato cênico sem dar uma passadinha por eles. Os pensamentos deles ora tangenciam sendas distintas, ora se aproximam para retomar a natural bifurcação de seus devires. Sim, teatro é antes de tudo devir, como bem apregoou Kantor nas formulações do seu teatro da morte. Barba é um dos homens mais lúcidos na escritura sobre os conceitos de dramaturgia. Nesse ponto, as ideias de ambos se aproximam, quase chegando à imanência. Em síntese, ambos colocam o espectador de teatro na condição de atores também. Barba busca a construção da dramaturgia do público; Kantor pensa na quebra completa das hierarquias no campo do drama. É pensando a partir dessa espécie de dramaturgia total, em que as ações psicofísicas se dão, que vamos analisar a peça “Mulheres Nuas”, que estreou no último final de semana no Teatro da UFSC e segue em cartaz.

O texto da peça, de autoria de Márlio Silveira da Silva, foi escrito na década de 1990 e desnuda Adalgisa, uma viúva solitária e seus dois, digamos, desdobramentos, chamados de Libe e Sara, que ora se transformam em empregada, ora em filha da protagonista, ora nela mesma. Trata-se de uma proposta, até certo ponto, ousada de escrita, que mistura humor negro, surrealismo, filosofia, alguma linguagem poética, algumas transgressões de ordem sexual, de gênero, de posicionamento da mulher diante do casamento e da sociedade como um todo. O texto pontua nitidamente todas essas questões. Contudo, como afirma Kantor, “ao lado do texto colocam-se outros elementos: objeto, movimento, som”. E, claro, a ação da cena que necessita, no dizer do polonês, um grau necessário de independência do texto porque é a carnação do ator.

Sob a direção de Christiano Scheiner, as atrizes Aline Maya, Graziela Meyer e a cantora Emília Carmona, em sua estreia como atriz, dão vida às mulheres nuas. O principal problema da montagem de Christiano é não apostar nas pulsões transgressivas que os subtextos oferecem. A montagem fica no terreno do conforto, tanto das atrizes que não avançam o sinal amarelo quanto do público que é pouco surpreendido, pouco sacudido pelas questões levantadas/sugeridas por Márlio. Um dos exemplos é o uso dos palavrões, um deles, já bastante comum na linguagem diária: “caralho”. Na cena inicial do espetáculo, a palavra ganha contornos de exposição da mediocridade, das frustrações, da vida confusa de Adalgisa e ao mesmo tempo de sua sede de liberdade. A tentativa de galhofa com o clássico, com o bem comportado, quando a atriz Grazi Meyer escande a palavra “caralho”, a coisa pende para um humor cômico que superficializa tudo que vem depois.  O “Caralho” teria que sair da boca da atriz como um enfrentamento, uma dor, um choque, mas também um prazer, um gozo, uma vitória contra a repressão. A palavra “caralho” deveria sair como entram os caralhos nas bocas femininas/masculinas: prazer, nojo, loucura, tensão, tesão, tudo misturado, sem limites morais, físicos, sociais.

No entanto, a rapidez das cenas, a falta de contudência das atrizes na defesa de suas personagens não rompe os limites que precisavam ser rompidos. Aline e Grazi conseguem, em algumas cenas, dominar e domar melhor a fúria corrosiva de suas existências diluídas, sobretudo no tom cômico dado a algumas cenas que pendem ao humor negro. O silêncio aterrador das vidas do subsolo. Porém, Emília Carmona, quando interpreta a filha, não consegue sair dos esteriótipos estabelecidos para ninfetas. A atriz não consegue sustentar a sensualidade numa doce calcinha de babadinhos e numa cena em que se transformaem mulher. Falta-lhe a imposição erótica que a cena pede. Transitando entre caras e bocas clichês, a atriz apaga um dos contrapontos mais transgressivos da peça: a sensualidade infantil e adolescente.

A ausência de transgressão também se dá na ambientação sonora, que pedia mais energia do que a simples ambientação proposta. Estamos com uma mulher em ebulição, dependente e independente do marido morto, uma mulher que atrasou por meses uma obra na sua casa para manter relações com os operários; estamos diante de uma mulher que tem consciência de seu corpo, de sua fala, da profundidade de sua vagina. Essa mulher não poderia ser “sonorizada” com delicadezas, sonzinhos amenos. Era preciso abrir para ela um caminho sonoro também mais transgressivo. Tal transgressão também poderia advir do projeto de iluminação mais proeminente. A luz proposta não dá conta dos contrastes e mudanças dessas “mulheres nuas” tão fragmentadas em suas existências.

O trabalho ainda padece daquele mal que tanto Kantor quanto Barba escreveram: o tratamento hierarquizado do todo. As atrizes, durante quase todo o espetáculo, dirigem seus olhares para um lugar que não é onde o espectador está. A iluminação e ambientação sonora, ainda que pensemos em todo o teatro surrealista, não se associa às vidas expostas no palco. Ou seja, há uma ausência de conexão, aquilo que Barba chama de dramaturgia orgânica, para que os elementos se fundam e aconteçam na sua plenitude.

Ainda assim é preciso dizer que “Mulheres Nuas” é um espetáculo interessante, que se passar por reformulações de ordem técnica-dramatúrgica, avançará. Porque pode ir     muito além dos limites seguros onde se instalou. O grupo pode começar por justificar a injustificada censura 18 anos estabelecida para a peça. Nunca é demais lembrar, o título chama-se “Mulheres nuas” porque, em síntese, trata-se do desnudamento psicológico, poético, até mesmo físico das mulheres, algo que, da forma apresentada, não conseguiu alcançar. Um pouco mais de coragem transgressiva permitiria o real desnudamento dessas mulheres.

Grazi Meyer e Aline são atrizes do primeiro time do nosso teatro que precisam de melhor orientação em suas atuações e mergulho nos subtextos oferecidos por Márlio. É a terceira montagem a que assistimos do dramaturgo e diretor Christiano Scheiner. Em “Pequeno Monólogo de Julieta”, com a atriz Gilca Rigotti, demonstrou a busca de uma poética própria e alcançou bom resultado. Na peça seguinte, “Quatro”, ele enfrenta, de maneira confusa, mais uma texto de Márlio Silveira da Silva.

Tadeusz Kantor, em suas observações para a busca do teatro zero, fala da busca de um “material explosivo” que por muito tempo foi fossilizado. O grupo tem o “material explosivo”. Agora é buscar a forma concreta da explosão. Flávio de Carvalho, no seu livro A Origem Animal de Deus é categórico: “Deus nasce no intestino”. Está aí um bom local para o grupo recomeçar a pensar as cenas de “Mulheres Nuas”.

 

 FOTOS GIL GUZZO, especial para REVISTA OSÍRIS


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