Entrevista inédita com Magda Modesto: uma homenagem à deusa da animação

O humanismo e a força de Magda Modesde

POR MARCO VASQUES E RUBENS DA CUNHA

              

Já na primeira resposta desta entrevista, Magda Modesto nos diz: “Eu não quero as coisas escondidas. Quando aceito expor, eu penso exatamente nas pessoas. Elas têm o direito de ter acesso a toda a informação que acumulei na vida. Para isso serve uma vida: para estar a serviço das outras.” Por isso, se faz cada vez mais necessário não esconder o nome de Magda Modesto, não esconder suas ideias, seus ideais, seu olhar completo sobre as manifestações culturais brasileiras, sobretudo no que tange às manifestações de títeres.

            Falecida em 22 de Abril de 2011, Magda Modesto teve uma longa vida dedicada ao estudo do teatro de bonecos. Conseguiu, ao longo dos anos, montar uma das maiores coleções de títeres do mundo. “A minha coleção pode ser chamada de nossa coleção”, tal foi a entrega e a solidariedade que essa colecionadora e pesquisadora tinha com os interessados em teatro de bonecos. Mas nem só do acervo excepcional se constituía a importância de Magda Modesto. Ela também era uma batalhadora pela preservação da integridade da cultura popular, lutava pela manutenção de uma certa pureza nas manifestações  do teatro de boneco, mesmo sabendo que tudo muda e que a diluição seria inevitável.

              Sempre de espada nas mãos, feito Quixote, Magda Modesto atravessava o Brasil levando aquilo que considerava o maior valor: a de ser uma distribuidora de uma linguagem artística, a mulher que nunca escondeu o jogo, que não se escondeu atrás de teorias, de academias, ou de uma pseudointelectualidade distanciada da vida. Para ela, o teatro e a vida não tinham fronteiras, não se separavam, mas se constituíram num maciço de poesia e encantamento que guiou os seus passos durante oito décadas de existência. Encontramos Magda em inúmeros festivais e sempre ficamos observando de longe, sem aproximação, até que em 2010, após três festivais e três encontros com troca de olhares e sorrisos, tomamos coragem e pedimos a ela que nos concedesse uma entrevista. Ela aceitou. A aparente fragilidade se desfez após a primeira pergunta, pois Magda tinha na voz a força de todo o corpo. Comungamos com nossos leitores este material inédito, na tentativa de ampliar a voz, viva, de Magda Modesto.

Em um de seus textos, a senhora diz: “enquanto no nordeste as manifestações de títeres e de expressão popular sobrevivem, no resto do Brasil elas estão se diluindo”. Qual o papel dos festivais de teatro de bonecos e objetos nesse contexto?

Exatamente.  O mundo está megalomaníaco porque as pessoas não olham mais para suas vidas, para suas raízes. Tudo está pasteurizado, mecanizado. No nordeste ainda é possível ver a expressão popular não falseada, genuína. Entendo que no restante do Brasil ela vem perdendo força. Então, os festivais podem dar força ao crescimento de uma nova forma. Uma forma mais atual de trabalho que não comprometa o verdadeiro sentido ou não perca o percurso histórico, já que as mudanças são inevitáveis. Evidente que o meu principal objetivo é o da pesquisa. Por exemplo, quando exponho minha coleção pretendo trazer à baila aquilo que existe e que muitos não vêem porque não têm a oportunidade de ver. Eu não quero as coisas escondidas. Quando aceito expor, eu penso exatamente nas pessoas. Elas têm o direito de ter acesso a toda a informação que acumulei na vida. Para isso serve uma vida: para estar a serviço das outras. Os festivais procuram informar e difundir às pessoas o sentido da animação. O que é a animação. Falo do sentido em que se tenta descobrir as próprias formulações. Em Santa Catarina vivemos um período em que estávamos preocupados com o Mamulengo. Então, tentamos procurar quais raízes foram deixadas aqui. Refiro-me às raízes das ditas formas populares. O que os imigrantes trouxeram para cá em termos de animação, que pode constituir uma parte da base deste estado, ainda está para ser recuperado.

Qual o fator determinante para o nordeste manter estas expressões ditas populares e no restante do Brasil elas se diluírem? 

Olha, isso é um a coisa chamada, às vezes, entre aspas, de progresso. Porque a pessoa vai em busca de atualização, de ser muito atual e esquece o que foi feito. Agora o que foi feito não é para ser repetido. É apenas para servir de base para fundamentar novas teorias que podem surgir. Aí, voltando aos festivais, acho que eles têm essa vantagem porque você encontra a coisa mais avançada, a coisa menos avançada. E esse intercâmbio é que dinamiza a arte da animação.

Quando surge o teatro de boneco? Há algum registro que consiga estabelecer um momento, um período?

A pergunta é ótima, mas a resposta é desanimadora, talvez. Porque não há como saber, já que a animação é uma manifestação inerente ao homem e vai surgindo nos mais diferentes lugares. É como os desenhos nas cavernas. Como você pode precisar onde começou? Não foi em Lascaux. Nós dissemos que foi lá porque os primeiros estudos apontam isso, mas sabemos que há outros desenhos e outras formas anteriores. Como precisar os desenhos e a arte das formações indígenas? No Piauí, foram achadas cavernas com desenhos de indígenas.

A senhora é detentora de uma das maiores coleção de títeres do mundo, como a senhora começou?

Isso, meu jovem, começou há muito tempo atrás. Sempre fui muito fascinada pela condição de animar e pela condição da animação em si. Essa energia que passamos para um ser, um objeto, um pano que é capaz de levar um homem do riso ao choro. Então, sempre me interessei pelos títeres. Mas não só no campo da animação, pois a confecção, o material, a estética de cada povo em desenhar aquilo que vai animar traz todo um mundo consigo. O fato é que tinha uma prima que sabia desse meu interesse e comprou um títere e me deu de presente. Era uma peça bem antiga, do nordeste. A partir desse presente eu me tornei colecionadora. E então eu fui à busca de mais e mais. E estou aqui expondo em Santa Catarina porque a minha busca é para isso mesmo, para mostrar aos outros. Não há egoísmo no meu acúmulo. Eu quero que os outros tenham oportunidade de descobrir o que aquilo é, o que aquilo representa e o que está dizendo.

A imagem do colecionador sempre está ligada a uma particularização. Você parece não colecionar, mas distribuir. 

A minha coleção pode ser chamada de nossa coleção. Tanto que eu faço questão de escrever textos e dar explicações sobre o universo e o contexto em que cada boneco, cada títere existe, para que as pessoas não fiquem no superficial. Não digam: “olhem, que tecido bonito”. O objetivo é se perguntar: que personagem é este? Quem terá pensado sobre este personagem? Qual passado ele representa? A que coletivo pertence? Então eu gosto de tentar auxiliar na leitura dessas formas. Ler os títeres é uma forma de conhecer o homem, como toda boa arte.

O Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Belo Horizonte instituiu um prêmio chamado Magda Modesto. Como a senhora recebeu a homenagem? 

É muito difícil de dizer. Eles me ligaram e perguntaram se eu me importaria e eu aceitei. Dizer não, seria agressivo com o carinho da homenagem. Evidente que eu sempre dei o maior apoio à realização desse festival e eles resolveram fazer isso. Bem, é sempre difícil falar dessas homenagens, pois geralmente acontecem quando estamos nos despedindo; por outro lado, dá a dimensão de ter feito algo para justificar a existência.

E a infância e a adolescência? Esse universo faz parte delas?

Sim. Em minha casa minha mãe nos incentivava a não comer o miolo do pão. Uma bobagem, mas ela fazia com que nós o guardássemos, molhássemos depois da refeição e fizéssemos bichinhos e exercícios teatrais em cima da mesa. E com isso fui adquirindo a busca e o desejo da animação. Sempre corria atrás da alma daquelas criaturas criadas nos miolos dos pães que minha mãe cozia.

Como se definiria?

Sempre na busca da animação. Na busca de contagiar as pessoas a perceberem a riqueza que há nessa arte. Essa arte de leitura do ser humano, pois a animação nada mais é que a leitura do ser humano pelos campos sociais e culturais.

Qual o momento, se é que existe apenas um, em que a senhora mais se emocionou em sua longa carreira?

Sempre senti entusiasmos pelas coisas que faço. O que me emociona profundamente é quando vejo jovens se interessando pela arte e pelo que ela realmente diz. Se interessando profundamente. Não essa coisa decorada que insistem em transplantar na cabeça das crianças e jovens.

Qual a sua relação com a academia?

Olha, o meu percurso está mais direcionado ao fato de colecionar, de estudar e pesquisar. Eu não sou nada acadêmica. A minha formação veio de uma busca natural e sem orientações acadêmicas. Organizo meu caos à minha maneira. Tem colecionador que coleciona para guardar; eu coleciono para expor, para colocar à disposição dos outros. É preciso dizer que tenho inúmeros amigos nas academias. Aqui em Santa Catarina sou muito amiga do Nini Beltrame, por exemplo. Em São Paulo, de Ana Maria Amaral.

Como gostaria de ser lembrada?

Eu desejo que todos aqueles que tenham a linguagem artística distribuam ao outro. Eu gostaria de ser lembrada como alguém que fez isso a vida toda. Nada mais. A arte só vale se definitivamente beneficiar o homem, porque coloca o homem na busca.

Você tem vindo a Santa Catarina com frequência. Como tem se sentido aqui?

Muito bem. Fiz uma exposição aqui na primeira edição do Festival de Formas Animadas de Jaraguá do Sul. Agora estou com outra aqui no Festival Internacional de Formas Animadas. Então, só posso estar feliz.

Se tivesse que dizer algo aos jovens bonequeiros, aos jovens profissionais da animação, o que diria?

Peço que eles vão à busca da poesia que existe nessa arte, que é uma coisa fantástica e poética, tanto em palavras quanto em movimento.

 


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