Entrevista com o ator espanhol Javier Corral

Javier Corral

 

UM TEATRO FEITO PARA DRIBLAR A FOME DE TEATRO

 Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

 Javier Corral é ator, diretor e dramaturgo. Possui mais de 20 anos de atuação no cenário teatral da Espanha. Nesta entrevista, ele nos fala de seu processo criativo, dos projetos em que está envolvido, como o curioso “Microteatro por dinheiro”, uma maneira que as gentes do teatro encontraram para romper os ditames do circuito comercial e da falta de apoio. Javier também lança um olhar sobre os problemas encontrados na Espanha, sobretudo, em relação ao teatro e à cultura de um modo geral. Recentemente, parte de seus trabalhos como ator e diretor foram expostos no Centro de Arte Rainha Sofia, dentro da exposição “Feito em casa 2014”.

 Vamos começar pelo básico: quando você decidiu se tornar ator? E qual foi o seu processo de formação?

Com apenas dezesseis anos, tive meu primeiro contato com a televisão de maneira muito casual e aí começou aquela coceira, aquela vontade de fazer. Assim, meu processo de formação começou na Escola “Los Castillos”, em Madrid. Eu ia ali escondido de minha família, mas ainda não sabia que queria ser ator. Descobri interpretando um papel masculino em Orquestra de senhoritas, do Jean Anouilh, nessa escola. Depois passei por muitos lugares: a Real Escola Superior de Arte Dramática, a Escola de Artes da Província de Buenos Aires, oficinas, aulas magistrais, a partir das quais fui elegendo meu próprio método para afrontar e enfrentar os personagens.

Percebe-se no seu trabalho uma grande variedade de personagens feitos para televisão, cinema e teatro.  Qual é o seu processo de preparação?  Há diferença entre um meio e outro?

Em cada personagem houve um processo, porém não sou dos atores que complicam muito. Costumo atirar-me na piscina com a boia da intuição e escutar atentamente as indicações do diretor. Trabalho a partir da verdade e crendo 100% em minhas ferramentas. Não dou muita bola para a insegurança. Caso os personagens já tenham tido um longo caminho, são eles que me guiam até saber como ou quem são. A diferença entre um meio e outro, basicamente, tem a ver com o tempo que você tem para se preparar. Trabalhei em séries nas quais insistiam para que eu esquecesse de toda minha aprendizagem anterior, para que se privilegiasse a imediatez. Houve outros nos quais eu pude desfrutar conhecendo o personagem, recriando-me nos detalhes. Habitualmente, no teatro e no cinema, costuma-se dispor de tempo suficiente para que o resultado final esteja à altura das nossas pretensões.

Uma das peças que você dirigiu tem o sugestivo nome de “mis padres no losaben”. Ela trata da questão da homossexualidade e da família. Como se apresenta, ainda em 2014,tal questão na sociedade espanhola?

Mais do que da homossexualidade, a peça fala da falta de entendimento entre os seres humanos; do respeito, da liberdade de amar sem preconceitos. Ao menos, eu tratei de dar mais importância à afetividade que à condição sexual. Qualquer pessoa que não se entendeu com seus pais poderia sentir-se identificada com os personagens e suas histórias. Na Espanha, se te aproximas de gente com cultura e respeito ao próximo, não terás nenhum problema com o que faças na cama, em tua intimidade. Porém, sabemos que na Espanha não existe toda a educação que desejamos e isso deriva, muitas vezes, em falta de respeito.

Ao observar a cena teatral de Madri, percebe-se o predomínio de um teatro bastante comercial e, em certo sentido, conservador. Como você avalia a cena teatral mais periférica, mais experimental da Espanha? Como está se dando a pesquisa por novas linguagens? Como se mantém as companhias de teatro que não são tão comerciais? Como você avalia a política cultural da Espanha?

Tanto dentro do teatro experimental como do teatro comercial há peças boas e más. É certo que o teatro comercial trata de agradar a um público mais amplo. A Espanha não é um país que se arrisca, precisamente, nem em cinema, nem em televisão, nem em teatro. Acomoda-se no fácil e barato e, de vez em quando, uma proposta mais arriscada tem êxito e passa para os circuitos comerciais. Penso que a busca de novas linguagens nasce do sofrimento, das vontades, das emoções em situação limite. O risco aparece quando a gente se encontra na dúvida entre abandonar ou ir com tudo, aí é quando se arrisca e surgem as ideias e linguagens surpreendentes. Outra coisa é como fazer com que o público possa valorizar esse tipo de linguagem diante da situação cultural em que está a Espanha. A política cultural na Espanha é uma piada. O artista nesse país não é valorizado além do divertimento, ou daqueles momentos de folga no fim do dia. O povo espanhol, em sua maioria, não sente a arte como algo necessário. A isso podemos chamar: falta de educação. Enquanto na escola for mais importante aprender matemática ou religião do que aprender a cantar, tocar um instrumento ou fazer teatro, o artista seguirá sendo difamado, ofendido, porque desde pequeno é que se educa na ignorância do que realmente pode nos fazer cultos. A cultura não interessa, por isso não nos ensinam na escola.

Você participa de um projeto chamado “Microteatro por dinero”. Poderia nos falar em que constitui tal projeto?

O projeto nasceu em 2010. É uma sala onde se representam pequenas peças com uma duração inferior a quinze minutos. Participei dirigindo nove peças breves e, na última, também interpreto junto com o ator Alejandro Terán. O título é For de hair e tivemos a oportunidade de realizá-la em Madri bem como na antiga cadeia de Segóvia, reestruturada para fazer teatro nas celas.

Você está envolvido com a peça Fearindustry, sob a direção do alemão AchimWieland.  Do que trata esta peça? Ela está dentro de um projeto teatral do diretor? Em que consiste esse projeto?

Na verdade, estou num processo de investigação, ainda não começamos a ensaiar. Fearindustryfala precisamente disso: o medo. O projeto é muito ambicioso, pois o diretor quer contar com um mesmo elenco, porém integrando uma parte distinta em cada país onde a obra se apresente. No caso da Espanha, me ocuparei de dirigir, escrever e interpretar essa parte que pode ter uma duração entre vinte e trinta minutos aproximadamente. Neste momento, investigo sobre o medo do suicídio e, por conseguinte, da morte. Minha proposta será arriscada, respeitando sempre o estilo e a pegada que Achim tenha dado à obra. Por certo, minha dose de comédia estará muito presente e, tendo em conta a temática, sei que desestruturará bastante.

Vamos fazer uma pergunta complexa: o que é teatro para você?

É uma via de escape, um grão no cu para os políticos conservadores, uma terapia para o doente, um espelho onde se reflete a loucura que todos levamos dentro. O teatro é minha casa. É no palco que escapo desta vida e transito por aquelas que as circunstâncias não me permitiram viver.

De todas as experiências teatrais transgressoras do século XX, com as quais você mais se identifica?

O teatro de Bertolt Brecht e sua ideia de que o público veja como se faz a peça; seu ideal de que o teatro realmente poderia mudar o mundo, ideal quimérico, sob meu ponto de vista, porém que conseguiu despertar algumas consciências com sua radical oposição à forma de vida e à visão de mundo da burguesia. Por outro lado, Rainer Werner Fassbinder foi outro revoltado do teatro do século XX. Gosto muito como ele é capaz de falar de política e emoções, de mesclar ambas as paixões, de falar da mulher, da homossexualidade, definitivamente, ele fala dos recôncavos do ser humano.

 

 

 


Crítica do espetáculo Interferências Schwanke

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CONTEMPORÂNEO E NÃO CONTEMPORÂNEO

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

            Luiz Henrique Schwanke foi experimental e transgressor até a sua morte, em 1992. Aliás, uma de suas propostas artísticas mais radicais era a de fazer da sua retirada do mundo uma intervenção artística, isto é, tinha a intenção de elevar a morte ao nível performático máximo. Apesar disso, a transgressão de Schwanke não o tornou um maldito, um reconhecido somente pelos pósteros. Sua carreira de artista plástico foi profícua e bem reconhecida em vida.

            Outro ponto a ser ressaltado é o fato de ele ter sido um artista que nasceu numa cidade provinciana e que sempre provocou o provincianismo de sua cidade. Suas torres de baldes, seus linguarudos, sua cobra coral de plástico são exemplos de uma desordem que o artista trazia à cidade que cultuava (e cultua) a utilidade do objeto, mas não conseguia (não consegue) ver o quanto um objeto deslocado de seu uso poderia se tornar também um evento estético. Sabemos todos que essa discussão é longa, atravessou o século, teve em artistas como Marcel Duchamp, René Magritte ou Andy Warhol os seus baluartes. Schwanke é dessa linhagem de artistas provocadores que está o tempo todo questionando conceitos estáticos e solidificados, sobretudo, a respeito do próprio fazer artístico. Esses questionamentos, vistos em suas obras, são diversos, amplos, causam comoção e desordem, mexem com o status quo e com a segurança bem linha reta dos provincianos.

            Vinte e dois anos depois de sua morte, o nome Luiz Henrique Schwanke foi institucionalizado, suas experiências estéticas entraram naquele jogo que o sistema econômico das artes costuma fazer: assimilar a transgressão, tornar grife o que era ruptura, claro, sempre mantendo ainda uma margem de choque, de imprevisibilidade, margem na qual a criação estética pode respirar, pode causar ainda seus terremotos, suas agudezas, suas desordens nas províncias que as pessoas carregam dentro. Assim, à parte toda a institucionalização do nome, da grife Schwanke, ainda resta um espaço no qual quem resolve criar outro objeto artístico, a partir da obra de Schwanke, deveria trabalhar. Infelizmente, não foi o que aconteceu com o espetáculo Interferências Schwanke da Cia. VAi!, que sob a direção de Raphael Vianna propôs um revisitamento da produção poética e estética de Schwanke. O espetáculo estreou dia 28 de novembro no Galpão de Teatro da  Ajote, em Joinville, apresentando-se também nos dias 29 e 30. De acordo com a sinopse, trata-se de um “espetáculo performativo”. Assim, temos em cena os atores Alex Maciel, Jackson Amorim, Jackson Silva e Marlon Zé se desdobrando em quatro Schwankes e performando seu fazer criativo.

            Há referências às principais obras do artista, bem como o texto dito pelos atores são algumas ideias teóricas de Schwanke, sempre muito descontextualizadas, diga-se de passagem. A dramaturgia criada para o espetáculo é um repetir inócuo de frases importantes e caras à obra do artista, no entanto, da forma como exploradas acabam por fazer com que o espectador saia do teatro com ideias opostas à do próprio Schawanke, como por exemplo a repetição constante da frase  “a arte é qualquer coisa” ou ideias sobre a questão do rebuscamento em arte. Há que se ressaltar que a obra em questão é uma obra rebuscada, de difícil apreensão imediata e que quebra com todos os parâmetros convencionais da visualidade, portanto, e uma obra altamente elaborada e permeada de certo rebuscamento conceitual. O curioso é que o grupo opta por insistir nestes dois pontos sem avançar, sem amarrar a fala do artista com o objeto estético que ele apresenta, entrando, o próprio espetáculo, numa contradição conceitual absurda, pois ele próprio se propõe, embora não alcance em nenhum momento, a navegar no limite da radicalidade.

            No palco também estão tês músicos que fazem a trilha sonora ao vivo e que pouco contribuem para a fala visual de Schwanke. A iluminação é o aspecto técnico que mais se destaca. Pensando que um dos projetos principais de Schwanke era fazer uma escultura de luz, o conceito de iluminação desenvolvido pelo diretor e executado por Flávio Andrade chama atenção, mas não consegue equilibrar a deficiência dos demais elementos que compõe o trabalho. A frieza com que o texto de Schwanke é manipulado, as saídas simplórias para cada cena, a pretensão de parecerem pós-modernos, conceituais, a falta de percepção do que a obra de Schwanke transgrediu, a ausência completa de qualquer sentimento, a obviedade dos gestos, das metáforas, o uso superficial de conceitos deleuzianos como repetição, ou a famosa desconstrução, proposta por Derrida, e que virou sinônimo de se destruir para construir algo no lugar, enfim, uma salada estética e filosófica que ao tentar trazer à cena a obra e o processo criativo de Schwanke, acaba por afastá-los da cena.

            Nada menos Schwanke do que a cena final, em que depois de derrubar (novamente, sem ação, sem presença performativa e sem emoção) pilhas de baldes, entra a voz de Schwanke e a sua fotografia projetada no telão. Recurso didático que toca as raias da pieguice e do colegial. O espetáculo chega a cometer erros primários. Um deles é a questão do espaço. É sabido que a arte teatral é a arte da ocupação do espaço por excelência. E não é que o grupo optou por fazer algumas cenas no chão sem considerar que o espectador não conseguirá assisti-las? Sim, todas as cenas ocorridas no chão são visíveis apenas para as três primeiras fileiras do teatro. As soluções óbvias e fáceis não param. Em uma cena um dos atores vai para o microfone e repete a palavra “vazio”, após isso segue ao fundo do palco e abre três galões vazios e os derruba no chão, numa multiplicidade de signo inócua e sem teatralidade alguma.

            Interferências Schwanke (nos perdoem o trocadilho) é um espetáculo que pouco interfere tanto na obra do homenageado, quanto na própria cidade, a qual Schwanke tanto quis admoestar com suas esculturas e quadros pintados sobre jornais velhos. Trata-se de um espetáculo que não captou aquilo que mantém a obra de Schwanke atual: a ousadia estética, a vontade de ruptura, o jogo contumaz entre o que é arte e o que não é arte, a transformação de materiais banais ou até mesmo incorpóreos como a luz em obras capazes de reverberar dores, agonias, niilismos, sensações de desencaixe e de desordem. Isso está na experiência criativa de Schwanke, mas não foi trazida para o espetáculo performativo da Cia. VAi! E Schwanke tem razão em dizer que todo rebuscamento que não esteja em busca de novos significados se torna algo que nada significa. O espetáculo acaba sendo, justamente, este arremedo de rebuscamento sem que haja uma linguagem que permeie o caos e permita que ele seja apreendido e que pulse no palco, e por consequência, atinja o espectador e reverbere para fora da quarta parede.

 Jéssica Michels (15)Fotos: Jéssica Michels


Crítica do Espetáculo Get Out!

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TEATRO INCOMUM, TEATRO DENTRO

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

 

            O 21º Floripa Teatro foi mais uma vez palco para a companhia mineira 4los5. Ano passado eles trouxeram para o festival a peça O outro lado. Neste ano, o grupo apresentou dois espetáculos: Get Out! e Humor. Nota-se que a trupe está em plena produção e, sobretudo, produzindo peças com um teor ético e estético bastante contundente. Estão, também, à procura de uma linguagem e da construção de uma poética que os identifique. Get Out!, monólogo em que Assis Benevenuto assume uma tríplice jornada: dramaturgo, diretor e ator, traduz alguns aspectos desta procura: um teatro simples, sem grandes teses, autoral, irônico e, sobretudo, muito técnico e poético.

         A escolha por dirigir, atuar e escrever – geralmente – é arriscada, pois, de uma forma ou de outra, limita o olhar do criador, ou seja, não há um olhar externo acompanhando a cena. Não é o caso de Assis Benevenuto, que consegue transitar muito bem nas três funções. Seu texto é contemporâneo, metalinguístico, cheio de referências pop e de humor. Sua direção é contida, bem delimitada e consegue fazer com que a sua interpretação seja o ponto forte do espetáculo. Temos um narrador que vai contando suas agruras, entre elas o medo de avião, e vai, ao mesmo tempo, desenrolando uma ácida crítica ao teatro, à vida e ao cinema contemporâneos. Além de criticar um tipo específico – e muito presente nos nossos tempos – de intelectualidade que se baseia muito nos conceitos e nas ideias mais estapafúrdias possíveis para explicar resultados estéticos muito ruins e pífios.

         Get Out! é uma peça muito simples que penetra de forma bem aguda nos espectadores. Muito da sensibilidade tocante, presente no palco, se deve ao talento extraordinário de Assis Benevenuto e da companhia 4los5, que vêm pesquisando a linguagem intimista há algum tempo e investindo na construção de uma dramaturgia própria.

         A trupe se apresenta, também, com o subtítulo de quem faz teatro comum, no entanto, o que vimos no palco do Sesc Prainha foi a realização de um teatro bastante incomum. Um teatro técnico, simples, sem grandes invenções, sem teses absolutas. Um teatro profundamente arraigado no humano – isso não é pleonasmo, já que o que mais graça em nossos palcos são espetáculos que ignoram o aspecto poético da cena. Em Get Out!, temos no palco um ator que nos joga para dentro e não apenas nos emociona, mas faz com que saiamos do teatro com aquela sensação de vazio, de perturbação, de mundo fraturado. O cenário, a dramaturgia, a iluminação e a partitura de cena estão a serviço do ator; tudo que é posto em cena está inteiro, não há elementos de excesso. Esta edição do Floripa Teatro foi pródiga em bons e excelentes espetáculos. Oxalá seja o início de uma mudança perene.

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Crítica do espetáculo Os gigantes da montanha

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MUITA TÉCNICA E POUCA CENTELHA

            Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

 

            O Floripa Teatro está de cara nova. Repensou alguns aspectos, sobretudo a curadoria, a aposta no debate e um enxugamento na programação. O resultado é um festival mais leve e com espetáculos que transitam entre o bom tecnicamente e o excelente na técnica e nas suas construções poéticas. Na noite de terça-feira vimos o Teatro Ademir da Rosa lotado como faz tempo não se vê em um festival feito na Capital. Era a noite do Grupo Galpão apresentar o a montagem Os gigantes da montanha, do italiano Luigi Pirandello, que como seu texto Seis Personagens à procura de um autor, tem como eixo o próprio teatro, o poder da crença na criação cênica e a mistura, inequívoca, do que é realmente ficcional e o que é real.

            O Grupo Galpão é um desses grupos de teatro que atingiu o perigoso status de grife. O nome Galpão, por si só, confere uma força e uma qualidade ao espetáculo. Por sorte, uma das principais companhias teatrais do Brasil tem consciência de seu nome, de seu status de grife e busca sempre corresponder à altura. Eles estão sempre aprofundando e experimentando sua linguagem. Com duas dezenas de peças no repertório, o Galpão já apresentou inúmeras montagens que são obras-primas do teatro nacional, bem como, conseguiu em muitas das encenações, aquele difícil ato de abrir uma trincheira, ou de abrir uma clareira na linguagem teatral, ou seja, de colocar um antes e um depois na história.

            É sob essa grife, sob o peso desse nome, que eles apresentaram o espetáculo Os gigantes da montanha, peça inacabada de Luigi Pirandello. Sob a direção de um velho parceiro do grupo, Gabriel Vilela, a peça é uma exuberância visual e musical. No entanto, apesar de todo o profissionalismo, de toda a técnica e arte do Grupo Galpão e dos doze atores que estavam em cena, Os gigantes da montanha é uma peça que não se faz teatro, não deixou que aquela alquimia estranha e necessária da teatralidade acontecesse. A quarta parede se fez presente e o espetáculo se arrastou numa falta de ritmo incomum para uma trupe que é especializada em reler clássicos e autores teatrais das mais variadas épocas.

            Claro que o público aplaudiu de pé, posto que o cenário, os figurinos, a iluminação e a sonoplastia do espetáculo são de uma beleza incomum e de apuramento estético irreparável. No entanto, um dos motivos pelos quais o espetáculo não acontece como poesia teatral é o fato de o grupo submeter o trabalho a um espaço inadequado à sua proposta. Trata-se de um espetáculo pensado para ser encenado em espaços abertos. É evidente que o cenário fica encaixotado no palco e que os atores perdem seu poder de movimentação, por isso as ações ficam comprometidas, o espetáculo perde o ritmo e se ergue somente nos momentos em que o grupo canta, nestes momentos  conseguimos quebrar a quarta parede entrar no espetáculo. Alguém do grupo, seja o diretor, sejam os atores ou o produtor, em algum momento, deveria se impor e não aceitar a sujeição de uma montagem dessa envergadura sem que as condições adequadas sejam cumpridas.

            O palco do Ademir Rosa, definitivamente, não deu condições ao grupo de ritmar o trabalho. Por isso, o que se viu foi um espetáculo potencialmente excelente e que foi pensado para outro espaço. Como o teatro é uma arte espacial por excelência, o resultado em se deslocar um trabalho pensado para um lugar para outro pode ser catastrófico. No entanto, o Galpão, com todas as limitações visíveis, conseguiu honrar sua história, porque tem um elenco que soube, com muito sofrimento, driblar com alguma competência o evidente desconforto da cena. Resultado: muita técnica e pouca centelha.

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Crítica do espetáculo O LÍQUIDO TÁTIL

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O líquido tátil – da seriedade à irreverência da arte

 

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

 

Daniel Veronese é um dos principais dramaturgos latino-americanos da atualidade. A obra vasta do argentino tem em O líquido tátil um de seus melhores exemplares. Na peça, três personagens: uma atriz, seu marido e o irmão do marido entram num jogo de acusações, imposições, artimanhas, que servem para Veronese discutir, não apenas aspectos psicológicos e sexuais de seus personagens, mas o próprio teatro, a condição da arte e do artista.

Assim, a técnica da metalinguagem, do teatro narrativo, da quebra da quarta parede, da aproximação com a linguagem cinematográfica, do humor que toca o escracho e o absurdo servem de caldo para que Veronese teça suas críticas e revele seu olhar severo sobre o atual estado da arte e o atual estado da vida. O líquido tátil é uma peça fortemente calcada no texto, algo que a montagem do Grupo Teatral Espanca defende caninamente para fazer referência a uma das alegorias da peça. Contudo, a direção soube dosar o equilíbrio entre gesto e palavra, ação e vocalidade.

A direção do espetáculo, que ficou por conta do próprio Daniel Veronese, recebeu o grupo em Buenos Aires para uma residência. O cenário é simples: uma sala, um sofá, muitas carteiras de cigarro e palavras, palavras, palavras ditas em todos os tons e sobretons. Transitando entre o silêncio e a histeria, os três atores se revelam adonados de seus personagens, sobretudo Grace Passó, uma dessas atrizes que domina o ofício com maestria do início ao fim da sua estada em cena. Ela é um acontecimento verbo-voco-visual. Um petardo de força e humor que arrebata a plateia e que se impõe diante do espectador como que a dizer: “neste território, neste encontro, eu imponho as condições”. Os atores Gustavo Bones e Marcelo Castro acompanham essa força, incorporando dois irmãos que também transitam entre a neurose, a psicopatia e o recalque. Veronese mantém algumas características do chamado “teatrão”: diálogos rápidos, o exagero gestual, marcação e partituras simples e naturais. No entanto, quando precisa sair desse eixo da naturalidade e cair no escracho, no caricato não tem pudor nenhum em fazê-lo. Sobretudo na parte final, em que se tenta resolver o conflito familiar e se chama o cinema (e toda a acidez que é colocar cinema no teatro) para a coda do espetáculo.

            O Grupo Teatral Espanca tem dez anos de trajetória, uma base de linguagem muito sólida e não tem medo de inovar, de transgredir suas próprias certezas. Trata-se de um grupo capaz de assimilar uma peça como O líquido tátil, dirigida pelo próprio autor, e que acrescenta a ela sua força, seu jeito de fazer teatro, suas marcas poéticas. O trocadilho é inevitável: o Grupo Espanca nos espanca com uma peça atordoante; espanca as palavras até chegar à vocalidade, isto é, ao corpo e à presentificação da voz.

            Para além das discussões do eixo familiar, a peça faz uma discussão sobre a linguagem artística e impõe perguntas de difíceis respostas, tais como: qual é a função da arte? O que é arte? Sedimentamos ou não conceitos sobre a linguagem que se repetem e se tornam nulos? O que nos toca no mundo da arte? Quem, afinal, define o que é e o que não é um objeto estético validado pela história cultural? O cinema, a televisão, o trabalho do ator shakespeareano, o expressionismo, as vanguardas todas, enfim, a trama simbólica vai acomodando estes personagens-artistas consumidos pelo insucesso e condenados a ruminar o desejo do estrelato. Estamos diante de três atores interpretando três artistas que, de algum modo, se perderam nas entranhas das próprias linguagens de seus ofícios. Estamos diante de uma metáfora ácida e bem-humorada do que poderíamos nominar de sistema de poder das artes e de sistema de poder sobre a vida.

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Crítica do Espetáculo A história do comunismo…

anjos1A HISTÓRIA É FEITA DE MUITAS HISTÓRIAS

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

 

            Antes de qualquer análise, faz-se preciso dizer que uma das funções da crítica é a de tentar analisar um espetáculo sempre a partir de sua construção, a partir de sua gramática, de seus conceitos e princípios. O crítico, ator, diretor ou qualquer outra pessoa que se propõe a discutir uma obra de arte, tem a obrigação de entrar nela e não o de querer fazer dela aquilo que acredita ser o objeto estético ideal. Se o espetáculo se movimenta dentro do caos, por exemplo, cabe ao crítico identificar a lógica que permeia tal universo. Dito isto, vamos ao que interessa.

Em tempos politicamente polarizados e permeados pelo ódio (tanto à esquerda quanto à direita) uma peça como A história do comunismo contada aos doentes mentais se faz cada vez mais necessária. Ainda mais, quando a montagem consegue atualizar, redimensionar e aprofundar a discussão política e humana presente no texto do romeno Matéi Visniec. Trata-se da montagem da Cia. Anjos Pornográficos, de São Paulo, que se apresentou no 21º Festival Isnard Azevedo.

Com direção de André Abujamra e Miguel Hernandes, a peça conta com 14 atores em cena e nos revela, não apenas uma crítica à forma como o stalinismo fazia sua política, mas como age todo pensamento totalitário: pela idealização utópica, pela imposição da unidade, pelo desbaratamento de qualquer forma transgressora. E, obviamente, a loucura, seja a física, seja a metafórica, ou metafísica, é uma afronta, um enfrentamento aos sistemas opressores de qualquer matriz ideológica.

Eis o que essa montagem critica de forma veemente. E o faz usando o que o teatro tem de melhor a oferecer: um texto ácido, atores em plena forma de seu exercício, direção esmerada que consegue transitar no tênue fio da navalha entre o escracho e o ridículo, entre o chulo e o poético. O limite entre enternecer e enfurecer o espectador. Sim, tudo no espetáculo se apresenta para os nossos dias. Reações de vibração e de ódio, tal qual a vivemos hoje, são perfeitamente compreensíveis, porque estamos num momento histórico em que o totalitarismo é exercido em toda esquina. Sempre temos alguém para nos vigiar, para nos punir, para apontar, sempre vigilantes, os caminhos da suposta existência de uma luz soberana que devemos abraçar, beijar e venerar irrestritamente.

A Cia. Anjos Pornográficos tem uma longa história no teatro, e várias peças no repertório, sempre primando pela pesquisa. Vê-se a força de seu trabalho nessa montagem, sobretudo, no equilíbrio do elenco, no qual, cada um dos atores tem seu momento de centralidade, de, digamos, protagonismo, e nenhum deles diminui a carga tragicômica da cena. Colocar 14 atores em cena, lidar com alguns clichês sobre a loucura, sobre o desejo sexual, sobre arte engajada, sem cair no artificialismo, no pedantismo intelectual ou ficar na superfície do riso fácil, é trabalho raro. Por isso a direção conjunta de André Abujamra e Miguel Hernandez merece tanto destaque. Miguel também faz o personagem do escritor que ensinará o comunismo aos doentes mentais e que acaba aprendendo e apreendendo a loucura.

Impossível não lembrar de Simão Bacamarte, do texto O alienista, de Machado de Assis, em que o personagem se instala na cidade e cria a chamada Casa Verde, local em que arregimentará todo e qualquer ser que tenha um comportamento que Bacamarte considere estranho ou fora do padrão. Poderíamos também lembrar o livro Lágrimas na chuva em que o escritor Sérgio Faraco narra a sua amarga experiência com os camaradas comunistas. Contudo, o espetáculo A história do comunismo contada aos doentes mentais, em dias de intolerâncias exacerbadas, além de apresentar excelentes atores e direção, apresenta e discute o totalitarismo em sua crueza vigente. O trabalho não está discutido filiações e siglas partidárias, mas apresentando o homem naquilo que ele tem de mais cruel, isto é, a capacidade de ser intolerante com o saber e o sabor do outro.

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Crítica do espetáculo Diagnóstico Hamlet

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Diagnóstico Hamlet, a linguagem a serviço do teatro

 

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

 

Hamlet é uma dessas obras que permeiam o imaginário até das gentes que nunca leram ou viram-na em uma montagem. Suas falas, sua fábula, seus personagens são bastante conhecidos. Trata-se de uma peça muito adaptada para todas as linguagens artísticas. E como acontece com os clássicos, nesse sentido, Hamlet também é um paradoxo: parece que não há mais possibilidade de fazer algo novo, e é justamente dessa peça tão conhecida que pode surgir ainda algo inusitado, febril, diferente. Foi o que aconteceu com a peça que encerrou o 8º FITA: Diagnóstico Hamlet, produção da companhia espanhola Pélmànec, trouxe para os palcos de Florianópolis uma montagem contemporânea, ousada, prenhe de sentidos, de sons e fúrias, e que renova, com a linguagem dos bonecos, o clássico de Shakespeare.

 

A Companhia Pelmànec tem longa trajetória no teatro de animação e se percebe sua experiência técnica e artística nessa montagem. Sob a direção de María Castillo, o ator Miguel Gallardo, também responsável pelo texto, se desdobra de forma magnífica nos diversos personagens da peça de Shakespeare, todos relidos de forma profundamente atual. O destaque da peça, sem dúvida, é Miguel Gallardo, um desses raros atores/manipuladores que conseguem sumir quando o boneco que manipulam fala. Ele está e não está na cena. Se revela e se oculta de acordo com a necessidade técnica do trabalho.

 

Mas Diagnótico Hamlet é ainda mais primoroso porque Gallardo não é apenas o manipulador, ele é também o personagem principal da peça, que está em constante diálogo com Max/Hamlet, com a Mãe de Max/Gertrudes e com Ofélia. Além disso, o jogo cênico se completa com um uso surpreendente de projeções, que se apoderam do internetês para dar ainda mais tensão à cena. Diagnóstico Hamlet é um desses trabalhos para ficar remoendo por dias, não apenas por conseguir reler Hamlet de forma surpreendente, mas também porque se estabeleceu como uma peça reveladora das solidões, dos medos, das agruras desse, por assim dizer, homem tecnológico que estamos sendo. Discute a solidão globalizada e os olhares institucionais sobre o homem, sobre o medo e sobre a loucura. Não há como não pensar nos estudos de Michel Foucault sobre a loucura e os métodos repressores e controladores desempenhados pelas “sólidas instituições nacionais.”

 

No entanto, não é com dizeres que se faz teatro. O teatro, há muito, não acontece mais na palavra. É na cena, na organização de todos os elementos cênicos que uma obra teatral se sedimenta e vive. Diagnóstico Hamlet consegue aliar uma trilha sonora incrivelmente bela, uma atuação excelente, uma partitura de luz sóbria, que dialoga com as ações dos personagens, a relação visual que mergulha tanto na tecnologia quanto nas artes visuais. Enfim, é um espetáculo em que as linguagens são manipuladas com maestria e excelência técnica.

 

Depois de uma semana com a maioria dos espetáculos difíceis, o 8º FITA encerra com uma obra-prima. Oxalá esse tipo de espetáculo passe a ser o critério base para a escolha das peças nos próximos festivais. O poeta dinamarquês Peter Poulsen, em seu poema “Se eu fosse Hamlet”, presenteou a literatura com uma das mais bem-humoradas releituras da obra de bardo inglês. Diagnóstico Hamlet escolhe por aprofundar a condição de abandono do homem no mundo contemporâneo. Não sofre o simplismo, muito comum na montagem desse espetáculo, de transformar o personagem Hamlet no centro de uma discussão familiar, porque o próprio Shakespeare está discutindo mais que isso. Assim, Diagnóstico Hamlet escancara as portas instáveis de nosso mundo, de nossas vidas. É um trabalho cruelmente belo.

 


Crítica do espetáculo Um, dois, três: Alice!

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Um, Dois, Três: Alice! – um espetáculo infantil

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

 

A Téspis é uma das companhias mais experientes e ativas do teatro catarinense. Possui experiência na construção de espetáculos adultos e infantis. Do repertório infantil, Um, Dois, Três: Alice! veio participar do 8º FITA. Trata-se de um espetáculo que traz à cena uma das obras-primas da literatura universal: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, obra literária que colocou no imaginário do mundo uma série de seres estranhos como o Coelho sempre atrasado, a Rainha e, claro, a própria Alice, uma heroína bastante inteligente e corajosa.

Assim, sabendo do risco que é trabalhar com um material tão conhecido, Max Reinert, diretor do espetáculo, optou por uma boa mistura que reúne projeção de imagens, manipulação do cenário, adereços cotidianos e criativos, atores vestidos de maneira coloquial, e encaminhou a montagem para um aspecto mais lúdico, quase uma brincadeira de criança, em que os atores Denise da Luz, Jônata Gonçalves e Cidval Batista Jr. se desdobram em diversos personagens.

A linguagem cênica apresenta um tom cartunesco, é ágil, porém acompanhada por uma trilha sonora um tanto excessiva e repetitiva, chegando, em certos momentos, a desconcentrar o olhar sobre os movimentos da peça. No entanto, o grande acerto da direção e da atuação é não infantilizar (aqui percebido no sentido mais pejorativo) nem didatizar o texto nonsense de Carroll. O que se propõe ao público é um embarque numa viagem de som, cores e aventuras oníricas, sem muitos porquês racionais, afinal, como diz Alice no final da narrativa, “puxa, que sonho estranho eu tive”.

As possibilidades e as camadas oferecidas pelo espetáculo são suficientes para atrair tanto o “olhar livre” da infância quanto o olhar adulto. Boa direção, atuações firmes, dramaturgias bem construídas, com exceção da dramaturgia musical, são qualidades que foram apresentados no palco do Teatro da Igrejinha da UFSC neste quinto dia de Festival Internacional de Teatro de Animação.

Em que pese a qualidade do trabalho, faz-se necessário uma observação importante. O trabalho da Téspis, na acepção tradicional, não é um espetáculo de formas animadas, posto que abdica de dar anima (alma, em latim) a seres despossuídos de vida. A premissa tradicional do teatro de formas animadas é, em primeira instância, dar vida a um boneco, a um objeto ou a qualquer ser inanimado, transferindo o jogo teatral do ator para os elementos citados.

Um, Dois, Três: Alice! é uma espetáculo infantil centrado no trabalho dos atores, que manipulam constantemente o cenário para que ele possa se adequar ao andamento do espetáculo. Por isso, em nosso entendimento, sua presença num Festival de Internacional de Teatro de Animação só pode ser vista a partir de um erro conceitual. No entanto, em épocas em que a palavra hibridismo e o conceito de transposição de margens tendem a acomodar coisas distintas como iguais, não existe “injustificativas” que não se pense justificadas.


Crítica do espetáculo Circo Poeira

 

 


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Circo Poeira e a necessidade

 de se ultrapassar a técnica

 

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

 

A sinopse da peça “Circo Poeira” nos informa que se trata de um espetáculo de Circo, Teatro e Boneco que conta de maneira poética e divertida a história do circo por meio das recordações de um Velho Mestre. Esse personagem seria o narrador da história, que relembra o auge de seu circo e o ápice de vida no circo. Dessa forma, surgem do fundo de sua memória os números que compõem o espetáculo.

Com direção e atuação de Caio Stolai, Circo Poeira cumpre somente parte do que promete na sinopse. Trata-se de um espetáculo simples, com boa trilha sonora e com a manipulação dos bonecos muito bem executada por Stolai. Porém, conforme vimos no espetáculo O Som das Cores, a técnica bem executada não sustenta um espetáculo; é preciso algo que dê liga, dê força e que coloque aquela energia técnica de pé. Em resumo, se faz necessário humanizar o mundo inanimado, e, para isso, é preciso um passo adiante da técnica.

O principal problema da peça Circo Poeira é a construção desse personagem “narrador”. A princípio deveríamos estar sempre conectados com ele, deveríamos estar vendo o que ele vê por certo, mas também deveríamos estar sempre o vendo também. Não é o que acontece. Muitas vezes o narrador é esquecido num canto, deixado de cabeça baixa, enquanto o número acontece no picadeiro. Pouco se estabeleceu o jogo da memória, pouco nos envolvemos com esse homem velho que deseja um mundo quase impossível de ser reconstruído, pois a forma com que Caio Stolai dirigiu seu espetáculo esquece justamente daquilo que precisava ser mais lembrado: a memória e a saudade desse homem.

E qual saudade? Com velhice que arrefece as forças físicas do personagem-pivô, vem a impossibilidade de viver e ensinar as peripécias circenses. Ele viveu do e para o circo. Então, resta a ele reconstituir, via memória, o seu mundo perdido. No entanto, é justamente este personagem-narrador que não ganha as feições poéticas que deveria conduzir o espectador aos números apresentados no palco. Caio Stolai, que executa e manipula com firmeza os números, peca justamente em não criar os contornos do personagem que tem por objetivo enternecer o espectador com suas lembranças. Por isso o espetáculo Circo Poeira pede a unidade poética proposta. Sobra-nos o número da bailarina, o número do capoeirista, o número dos elefantes, o malabarista de bolas e facas, enfim, a vida circense aparece nas cenas desconectada da figura do Velho Mestre.

Alguns personagens até tentam uma interação com esse Velho Mestre, mas tudo é feito de maneira rápida, pouco concentrada e, em certos momentos, até didática demais. Trata-se de um espetáculo com boas possibilidades de se tornar uma obra mais tocante, mais coesa, mais poética na mistura de saudosismo e memória, mas que precisaria trazer efetivamente para a cena esse “narrador” que foi tão bem confeccionado fisicamente, mas que permanece inanimado no palco.

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Crítica do espetáculo O SOM DAS CORES

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A PROMESSA TÉCNICA DE O SOM DAS CORES

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

[texto publicado no jornal Notícias do Dia em 19/08/2014]

            Durante muito tempo o texto dramático era considerado o elemento mais importante do teatro, ocupando lugares de honra, tanto na encenação, quanto nos estudos teatrais. O texto era algo praticamente intocável, todos os outros elementos que compõe a encenação deveriam se submeter a ele. No século XX esse predomínio do texto arrefeceu. Não há mais aquilo que Jean-Marie Piemme chamou de “dupla figura terrorista de fidelidade e traição”, ou seja, os encenadores não precisam se submeter ao texto como o objeto intocável e nem traí-lo com cortes, supressões, acréscimos.

            As experiências mais fortes do século XX, no que tange ao teatro, imiscuíram o texto na cena, a tal ponto de que o teatro – tanto o texto dramático, quanto a encenação – transformou-se num texto espetacular, tanto espetáculo do discurso quanto discurso do espetáculo, conforme nos diz Patrice Pavis, outro importante estudioso do teatro.

            Tendo como partida essa perspectiva, de que forma analisar um espetáculo como O som das cores, produção da experiente companhia mineira Catibrum. Um espetáculo cuja engenharia cenotécnica é primorosa, além de apresentar soluções de luz, música e bonecos orgânicos e bem manipulados. No entanto, o espetáculo O som das cores sucumbe diante de um texto assustadoramente ruim.

            Baseado num livro do taiwanês Jimmy Liao e em poemas de Rainer Maria Rilke, o espetáculo conta a história de Lúcia, uma menina cega, que sai atrás de seu cão, pois ela acredita que o animal roubou seus olhos. Então, ela entra num labirinto de fantasia e imaginação, enquanto procura seus olhos, vai conseguindo ouvir, cheirar, sentir e ver inúmeras coisas e a si mesma.        Contado assim, parece promissor, no entanto isso é transformado numa salada de auto-ajuda pseudo-poética que contamina toda a beleza plástica do espetáculo. Ou seja, o texto dramático pode não ter mais o poder que tinha antes, pode ser apenas mais um elemento dentro da encenação, no entanto, de todos os elementos ele é aquele que se falhar, corrompe os outros elementos de maneira peremptória.

            Foi o que aconteceu no segundo dia do Festival Internacional de Formas Animadas, no Teatro Álvaro de Carvalho, porque O som das cores é um espetáculo promissor, tecnicamente bem executado, mas que é atropelado por um texto didático, frágil, despossuído de qualquer qualidade poética e dramática. Depois do império do texto no teatro tivemos, também, o império do ator e, por fim, a vez do diretor. Hoje, como bem acentua Eugênio Barba, o importante é compor uma dramaturgia para cada elemento cênico e ordenar o todo de acordo com as opções estéticas de cada coletivo. A dramaturgia, hoje, é vista como um todo. No teatro de animação, sobretudo, este todo necessita estar muito bem temperado.