LIVRES E IGUAIS em cartaz, NO TEATRO DA UFSC, durante todo mês de maio

LIVRES E IGUAIS: TEATRO TOTAL

Tem uma metáfora do Artaud que diz muito acerca do espetáculo Livres e iguais. O gênio francês fala sobre iluminações, sobre atear fogo ao corpo do espectador. É no livro Linguagem e vida que ele desenha o mapa poético do palco, ou seja, é nesta obra que ele define o que lhe interessa na arte teatral, sobretudo na condição de observador. O livro Queimar a casa, de Eugenio Barba, também tem uma imagem que é a própria carnação do trabalho que está em cartaz no Teatro da UFSC. Barba tem o desejo de realizar um espetáculo-incêndio. Tem por sonho queimar o teatro: um sonho-Fênix. E Livres e iguais coloca fogo em matéria fria para incinerar o olhar do espectador.  O espetáculo é antes de tudo um ato de coragem.

Para começar, a dramaturgia assinada por Júlio Maurício, Nazareno Pereira e Nini Beltrame [também diretores da encenação] é construída a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por isso, como toda arte, o trabalho é um ato de denúncia; contudo, o ato de denúncia em si pode ser um grito solto no ar, pode ser um ato político coletivo, pode, ainda, cair no mero discurso panfletário. Então, perante todos esses riscos, reafirmarmos que estamos diante de um ato de coragem, pois Livres e iguais se afasta dessas falhas e afasias. E mergulha no labirinto da arte poética. Livres e iguais é poesia. Não é teatro dócil e inócuo; é, sim, teatro de impacto.

Pois é do humano fora do seu “natural”, para continuarmos em Artaud, que se fundamentam as cenas do espetáculo. E se teatro é vida, como apregoa Peter Brook, estamos diante da vida e suas premências básicas: o direito à alimentação, o direito ao lazer, ao prazer, à educação, à arte e, sobretudo, o direito ao sonho e à liberdade de escolhas.  O grupo Teatro Sim… Por Que Não!??? foge do mergulho à pieguice e constrói um manual poético a partir de elementos que significam impureza e amorfismo.  Parte do cenário, os bonecos e demais objetos, é confeccionado das sobras humanas, do lixo. O ferro, o aço, o cobre e o plástico tomarão vulto e espelhamento vivo. É dos elementos duros, não poéticos, rejeitados e sem utilidade ao homem que se dá a apropriação para a fusão do calor. Há uma espécie de antropomorfização das coisas imprestáveis. A poética de Manoel de Barros, construtor de nadezas, é evocada inúmeras vezes. Textos bíblicos, como O Livro de Jô, são referências evidentes, sobretudo do recorte feito nas telas de Joan Miró.    

A iluminação, as projeções, a direção, a manipulação dos bonecos e objetos, a sonoplastia que vai dos ritos xâmanicos ao clássico e o aproveitamento de imagens de pintores como Kandisnky e Miró ligadas a imagens dos lixões de nossas cidades criam aquilo que pode ser chamado de uma dramaturgia total, de um teatro total para nos aproximarmos novamente de Eugenio Barba.

Em seu Manifesto por um teatro abortado, Artaud afirma: “Nós não procuramos denunciar como isto se produziu até aqui, como isto sempre foi o fato do teatro, a ilusão daquilo que não existe, mas ao contrário fazer aparecer ante o olhares um certo número de quadros, e imagens indestrutíveis, inegáveis, que falarão ao espírito diretamente. Os objetos, os acessórios, os próprios cenários que figurarão no palco, deverão ser entendidos sentido imediato, sem transposição; deverão ser tomados não pelo que representam, mas pelo que são na realidade. A encenação propriamente dita, as evoluções dos atores, não deverão ser consideradas senão como signos visíveis de um linguagem invisível e secreta. Não haverá um só gesto de teatro que não carregará atrás de si toda a fatalidade da vida e os misteriosos encontros dos sonhos.” Livres e iguais é uma sucessão de imagens indestrutíveis, é teatro-poesia de impacto, teatro-total. Vai de margem a margem às fraturas.

Então, saiam de suas casas e apareçam ali no Teatro da UFSC, neste final de semana, (sexta, sábado e domingo; às 20h30 min) porque o espetáculo, que é um ato absoluto de coragem e poesia, precisa de espectador que tenha coragem de beber na “terceira margem do rio”.  Muito mais não posso dizer. Só sei que Livres e iguais é capaz de esquentar a pedra e tatuar as lágrimas.

Fotos 1 e 2 de CLEIDE OLIVEIRA


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