JÚLIA: OS PÁRIAS E O RISO

JÚLIA – OS PÁRIAS E O RISO

POR MARCO VASQUES E RUBENS DA CUNHA

As sociedades humanas são bastante experientes em produzir párias, gente que não se encaixa e que por isso é jogada à margem. Alguns, como Édipo, se tornam párias por causa de alguma tragédia pessoal; outros, como os leprosos da Bíblia, são jogados à margem por causa da doença, da loucura, de algum defeito congênito. Atualmente, os párias são os viciados e os abandonados da religião capitalista, pensando sempre em Walter Benjamim: não produzem e não consomem, portanto, não servem para viver as benesses da sociedade, devem ir para aquela parte invisível das cidades e viver de restos. Das Moiras gregas aos expulsos do paraíso capitalista, vamos aprimorando as nossas doses cavalares de crueldades e ampliando nossas desgraças.

            Um dos grandes espetáculos apresentados na Maratona Cultural de Florianópolis foi Júlia, da Companhia Cirquinho do Revirado, de Criciúma. Sob a direção de Pépe Sedrez, diretor da Cia Carona, de Blumenau, a peça trouxe para o centro da praça dois párias da sociedade: Julia e Palheta, que chegam mulambentos, feios, agressivos e começam a cortante apresentação da “dança da aleijada”. A partir disso, o que se vê são dois atores, Reveraldo Joaquim e Yonara Marques, em completo domínio de sua arte, um diretor em mais um momento de contumaz acerto (lembrando que Passarópolis, criticado aqui, tem a mão de Pépe Sedrez também), e uma peça capaz de produzir aquela sensação de incômodo, de perturbação da ordem, de lembrança de que ali, sob a dita normalidade, vivem milhares de párias que se insurgirão a qualquer instante.

            Os atores encarnam as figuras do palhaço e do bufão para jogar todas as delicadezas e cruezas deste mundo desorbitado e sem sentido. E aí reside mais um acerto da direção, pois Reveraldo e Yonara ora mergulham nas suas desgraças através da singeleza e pureza, características do palhaço, e ora atiram suas desgraças no rosto do espectador, com toda a malícia e agressividade que caracteriza o bufão. Atuações impecáveis, nutridas da mais absoluta teatralidade, nada em Júlia é gratuito, frouxo ou mal pensando. A dramaturgia coletiva, com consultoria do dramaturgo Gregory Haertel, quem vem se afirmando a cada trabalho, perpassa clássicos do teatro grego, Dom Quixote de Cervantes, Fando e Lis, de Fernando Arrabal e Dias Felizes, de Beckett. Júlia e Palheta são amarrados pelo destino, feito aqueles personagens do filme Dolls. São Winnie e Willie, de Dias Felizes, que afundam juntos, mergulhados na solidão e no desespero. Eles encarnam a trajetória de Fando e Lis, que recebeu uma versão para o cinema, dirigida pelo poeta chileno Alejandro Jodorowsky.

            E o que é mais importante: as referências em Júlia são feitas por contaminação, por apropriação. Não são meros exercícios intelectualoides, porque o espetáculo é de uma humanidade aterradora, dolorosa e paradoxalmente bonita e sutil. Fica entre a falência do amor e a busca de um espaço para guardar, a sete chaves, um pouco do mundo sem dor, ainda que estraçalhadamente dolorido. Para isso, o espetáculo Júlia se utiliza de um visual grotesco, inspirado na obra de Bispo do Rosário, para mostrar a poesia da margem, a poesia obscena da margem. São dois renegados que sobrevivem de uma doce mentira, da esperança de surpreender o público, usando técnicas que vão do humor físico mais comum a um elaborado trabalho de corpo e voz. O casal seduz o público pelas lamentações, pelas brigas, pelo erotismo que se instala na cena. Lembrando que a beleza aqui não é limpa, não é clássica ou sublime; a beleza aqui vem revestida de resto, de poeira, de sujidades e dentes podres. A beleza de Júlia transita entre o obsceno e o grotesco.

            Georges Bataille dizia que a obscenidade é uma relação, que não há obscenidade como há o fogo ou há o sangue, mas só há obscenidade se a pessoa assim o vê e, assim, o diz; é uma relação entre o objeto e o espírito de uma pessoa. Portanto, existem diversas formas de ver a obscenidade de Júlia. Alguns a verão no contato físico dos personagens, principalmente quando Júlia lava os pés de Palheta. A obscenidade também pode acontecer porque Julia trabalha no plano do profano e do sagrado. Essa cena da lavação dos pés, por exemplo, acumula toda uma carga obscena, erótica e nitidamente religiosa, sagrada. Outros verão a obscenidade na situação em que esses párias estão abandonados, azarados, pobres e fazem o que podem para sobreviver mais um dia.

São muitas as saídas e possibilidades para se ler Júlia, porque ela estabelece esse contato obsceno com a plateia, onde cada um vai enfrentar seus preconceitos, seus medos e desejos. A relação obscena existente entre os personagens e o público é acentuada pelo visual grotesco da carroça, das coisas que os personagens portam, das roupas que vestem e, sobretudo, do corpo que os atores colocam em cena. Os corpos de Júlia e Palheta são o espaço para a pústula, a nojeira, o espinho, mas também para o sol do prazer, a delicadeza do toque.

O grotesco advém do italiano grotta, gruta. Trata-se de um “mundo alheado”, tornado estranho, pois esse mundo, ou essa gruta, “é o nosso mundo – e não o é”; é um espaço onde o horror, mesclado ao riso, se fundamenta na experiência de que o mundo “se alheia sob a irrupção de poderes abismais, se desarticula nas juntas e nas formas, e se dissolve em suas ordenações”, conforme Wolfgang Kayser. Júlia e Palheta são saídos dessa gruta, vêm à luz dizer suas verdades e mentiras, vêm oferecer ao público um pouco de suas vidas artísticas desregradas e desgarradas.

Palheta tem um bordão incrivelmente cruel: “não é fácil ter pernas”. Esse bordão é cruel porque é dirigido ao público, que imagina estar diante de uma personagem que perdeu as pernas num incêndio. O público pensa estar diante de dois circenses abandonados. Contudo, tudo é uma farsa. Os personagens são artistas de rua, desses tão viventes em nossas praças. São personagens da própria desgraça. São esses pedintes diários que fazemos questão de não olhar. A dança da aleijada, tão anunciada no início do espetáculo, é um golpe, um engodo. Mas é um engodo real. Uma farsa verídica. Um golpe profundo no espectador. No final, quando o público pouco colabora financeiramente com tantos esforços, recebemos de Júlia xingamentos. É o bufão irascível sempre aparecendo na cena, dizendo verdades doloridas para o nosso orgulho de pessoas normais. Mantemo-nos superiores, rimos, achamos divertida a desgraça apresentada à nossa frente, mas, no fundo, ficam os agudos gritos de Júlia, a parvoíce de Palheta nos cutucando, nos impingindo os escuros dos quais fugimos sempre.

Júlia e Palheta se afastam do público dizendo que numa outra praça encontrarão gente melhor do que essa; preferem não continuar mostrando a imundície humana, seja ela a limpa imundície da plateia ou a suja imundície com que se apresentaram. Silenciam e seguem até a próxima praça, onde mais uma vez demonstrarão a força que os invisíveis têm. Nós, do alto de nossas vidas saudáveis, silenciamos também. Por isso, Júlia é um espetáculo que nos encanta e nos desespera. É áspero e doce. Um tiro de revólver com bala de festim mais mortal que aço, que tudo corta. Além disso, o grupo traz toda uma discussão do que é real, do que é irreal, e revela, também, a trágica condição do artista de rua, do homem da rua.

Há um jogo seguro entre os atores, que é fruto de uma vida juntos, de um mundo compartilhado, pois Reveraldo e Yonara fundaram a companhia Cirquinho do Revirado e compartilham o mundo, pois são casados. Essa intimidade, esse adentramento de um no universo do outro, contribuí, nitidamente, para o andamento da cena, porque a peça é um espetáculo que exige uma cumplicidade apenas conquistada pela intimidade, pelo amor à vida e à cena. Júlia nos causa aquele sorriso desesperado. É a fabulação do humor negro alcançado com apuro técnico e gigantesca humanidade. É poesia. É vísceras. É o que chamamos de teatralidade total, teatralidade sublime.

 


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